quinta-feira, 20 de julho de 2017

Autismo: que luta é essa?

E quem não lutaria por esse sorriso? (arquivo/2017)

Já escrevi algumas vezes sobre os sentimentos que me tomaram desde que comecei a desconfiar que o desenvolvimento do meu primeiro filho, Bento, corria fora dos trilhos. Solidão, medo, culpa, tristeza são alguns deles. Senti tudo isso, claro, e senti muito mais. Tive que me deparar com sensações que me deixam pouco à vontade hoje, quando relembro, e preciso me esconder delas na tentativa vã de acreditar que jamais existiram.

Foi devastador encarar a primeira vez a palavra autismo e de forma tão íntima, porque eu não sabia, em absoluto, do que se tratava e imaginava o pior. Minha capacidade de raciocínio deve ter atingido o nível mais elementar. O emocional e o instintivo assumiram, então, as rédeas – decerto, o que me salvou. Olhava meu filhinho na casa dos dois anos e ele importava, nada mais. Se o autismo era um desconhecido, meu filho não era. Mentalizei que nenhuma condição seria para mim mais marcante do que sua condição de filho, de ser que amo, e consegui sair da bolha que me encontrava no início, uma bolha de conceitos equivocados. Essa foi a minha luta número um, a luta particular.

Com sorte, nossa família encontrou, logo no começo da caminhada, excelentes profissionais, que nos ajudaram a compreender e a buscar a compreensão no fato do nosso filho ser uma pessoa única e de seu autismo também ser único. Eles nos disseram algo que faz bastante sentido: por mais que Transtornos do Espectro do Autismo (Tea) seja uma classificação para sujeitos com características comuns, as crianças com autismo têm sua natureza própria e estão em constante construção de identidade, como as outras. Hoje não é surpreendente para mim encontrar tantos autistas diferentes, com habilidades e dificuldades que variam tanto – até entre os classificados num único “grau”. Naquela época eu acreditava que autismo era uma espécie de “combo” e que autistas eram como crianças em série com os mesmos “itens de pacote”.

Sim, os itens de série existem. Eu posso enxergar no seu filho autista muito do meu filho autista, ainda que eles estejam localizados em pontos distantes no que definem como espectro. Talvez os dois gostem de pular freneticamente, de repetir frases feitas e tenham sensibilidade auditiva. E talvez só um deles desenvolveu leitura precoce, gosta de girar as rodas dos carrinhos de brinquedo, balança o corpo para frente e para trás. Cada uma dessas crianças acena para a família, a escola, o sistema de saúde, a sociedade etc. que tem uma demanda própria. A grande tentativa que me atiro todos os dias agora é essa: compreender as particularidades. É também esse meu esforço quando estou em contato com todo o raio de convivência do meu filho: que as particularidades sejam levadas em conta. Mas, a aceitação de que a pessoa com autismo não deve ser generalizada é difícil para a maioria. Foi essa compreensão que me levou à luta seguinte, a luta coletiva – cujo armamento, por exemplo, inclui esse blog.

Existem caixas no sistema educacional, caixas nas relações sociais, caixas no mercado de trabalho e caixas até no campo afetivo. Não “encaixar” é uma espécie de oitavo pecado capital. Crianças que não “encaixam” (e entre elas há um universo infinitamente maior que o universo do autismo) foram por muito tempo relegadas à vala funda da exclusão, e infelizmente continuam a ser. Hoje, mesmo que inclusão seja mais uma palavra da moda do que uma prática, temos a oportunidade de lutar para que a adaptação (de conteúdos e situações) exista e permita que indivíduos com potencial diferente possam contribuir num grupo, cada qual a sua maneira. Não foi sempre assim e não viemos parar aqui por sorte ou acaso, há muita gente engajada nessa luta, porém, há também muito espaço vazio precisando ser preenchido.

A luta pela escola inclusiva, pelo mercado inclusivo, pela comunidade inclusiva, pelos meios de comunicação inclusivos, pela família inclusiva, não é uma busca de favorecimento à pessoa com deficiência em detrimento das demais, como tantas pessoas físicas e jurídicas (!) entendem e querem fazer entender. Essa é uma luta por oportunidades justas de aprendizagem, trabalho e convivência social. Tão importante quanto saber usar as armas certas (coragem, conhecimento, amparo legal) é ter capacidade de desarmar o oponente, desarmá-lo do preconceito.

Para isso, não precisa ter um blog, lançar um livro ou estar na tevê. Mas, precisa sair da bolha. Dizer para si, para os outros e para os próprios autistas (há pais que nunca disseram a seus filhos o nome da sua condição): o autismo existe e está aqui. Dizer: meu filho é autista e vai à escola regular ou especial, às festinhas da família, aos clubes, aos parques, às oficinas de arte, às modalidades de esporte, aos shoppings centers, à igreja, à busca do emprego... E não o discurso contrário. Esse parece o primeiro passo. E antes que alguém pergunte “é só isso?”, advirto: sim, e vai ser difícil.  

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